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sábado, 8 de outubro de 2011

A Mercês retorna à paisagem renovando as esperanças‏



A capela se abre para a primeira missa


  •  Depois de longa privação e impotência, o regozijo por uma força que está voltando, por uma fé vívida em um amanhã e em um depois de amanhã, por um súbito senso e antegozo de um futuro, de aventuras iminentes, de mares que estão novamente abertos, de objetivos que são outra vez permitidos, em que tornamos acreditar.
  •                                                 Nietzsche

  A capelinha das Mercês, que havia sido varrida da paisagem de São Luiz do Paraitinga na grande enchente de 2010, está de volta ao pé do morro do Cruzeiro.
    Reconstituida por completo, recuperou até detalhes originais perdidos pela ação do tempo, revestiu-se de sua antiga pintura colonial e ganhou um reforço estrutural para resistir com mais solidez pelo novo tempo que se inicia.
    Quando foi devolvida à emoção dos luizenses em 25 de setembro, operou também a façanha de regenerar a tradição com que se comemorava o dia de Nossa Senhora das Mercês (24), uma data que havia se perdido no antigo calendário das festividades religiosas da cidade.
     Depois de abertas as portas, a centenária imagem de terracota policromada da santa foi reconduzida à devoção de antigos e novos fiéis. Feita em pedaços naquela tragédia, ela retornou inteiramente restaurada ao ponto mais alto do altar, desta que é a primeira igreja colonial de São Luiz.

PATRIMÔNIO ESPECIAL
    O resgate deste patrimônio começou no instante após a tragédia, dando-se prioridade às peças iconográficas. A mais preciosa delas, a imagem de Nossa Senhora das Mercês, datada do Séc. XVIII, foi logo encontrada sob os escombros, por uma equipe de buscas arregimentada por José Carlos Imparato, professor de Odontologia da USP e arqueólogo nas horas vagas, morador nas vizinhanças.
    Por ter ficado encaixada num desvão, em meio a lama e entulhos, as partes mais delicadas do seu rosto, o maior pedaço do manto e suas mãos, preservaram-se com poucas avarias. O tronco, no entanto, ficou severamente comprometido.
    O delicado trabalho de recuperação, com detalhismo quase cirúrgico, durou meses e coube à restauradora Juliana Fabrino tratar da remontagem dos 94 cacos em que se fragmentou a santinha, o que lhe devolveu a aparência inconsútil de origem.
   
Antes
   "Ela foi recuperada na sua integridade, sem deixar faltar nada, pois o fiel que a venera não quer saber de rezar para uma imagem mutilada. Ao contrário de uma peça de museu, que mesmo estando incompleta pode ser exibida " - explicou João Dannemann, titular da cadeira de Conservação e Restauro, da Universidade Federal da Bahia, supervisor maior do trabalho de reparação iconográfica em São Luiz do Paraitinga.

Dannemann e uma equipe de restauradores foram contratados pela construtora Biapó, que atuou no centro histórico luizense, a serviço do Iphan. Essa empresa goiana é a única do País a trabalhar exclusivamente na restauração de patrimônios históricos,com uma carteira de mais de 100 obras executadas.
Depois
   Pelo seu ateliê de restauro montado na rua do Rosário passaram as imagens de São Luiz de Tolosa (patrono da cidade), N.Sª das Dores, o Cristo Crucificado, além de outros 12 santos e querubins, todos resgatados sob as ruínas da Igreja Matriz e da Capela das Mercês.

IMAGEM SINGULAR
         A Nossa Senhora das Mercês venerada em São Luíz do Paraitinga é uma imagem rara e peculiar da Mãe Santíssima. Chamando atenção o ventre volumoso sob o escapulário, que revelaria sua gravidez do Menino Jesus, ela comove a quem vê, pela sua expressão de profunda beatitude e acolhimento maternal.
   Imagens da Imaculada representando o que se chamou de "Culto à Expectação do Parto", foram comuns na Europa em séculos passados, de onde também procedeu a santinha luizense. O registro mais antigo que se tem notícia vem Portugal, dando conta que na localidade de Terras Novas, em 1212, já se venerava uma imagem da Senhora nessas circunstâncias, na capela-mór da Igreja de Santa Maria do Castelo. Como se deu posteriormente também com representações similares de N.Sª do Ó.
Imagem rara
Em meados do séc. XIX, o Papa Pio IX, na bula Ineffabilis Deus, definiu o dogma da Imaculada Conceição de Maria, preservando a Virgem Maria “jamais poluída pela mancha do pecado”. Extrapolando no zelo, muitos padres decidiram por conta própria banir toda iconografia da Madonna grávida, enterrando-as sob os altares das igrejas.
Assim foi feito e somente em fins daquele mesmo século, quando a proibição foi abrandada, muitas dessas imagens proscritas foram desencavadas e reabilitadas. Por nada disto, porém, passou a Puríssima que abriga São Luiz do Paraitinga, onde sempre manteve-se descoberta no altar e cultuada sem reservas, por pobres e ricos, negros e brancos.

PÁTINA DA HISTÓRIA
    As águas mal haviam escoado e uma equipe técnica do Iphan já percorria a cidade dimensionando os estragos. Num segundo momento, esses especialistas vindos de Goiás passaram a cuidar do salvamento, limpeza e guarda dos bens, assim como escoramento e isolamento do patrimônio e sítios atingidos.
    Foi fundamental o apoio que prestaram aos moradores do centro histórico, assim como o encaminhamento de futuros projetos de restauro e reconstrução.
    Eles traziam à cidade a experiência obtida na reconstrução da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, em Pirenópolis, consumida por incêndio, assim como da recuperação do casario e outros bens coloniais de Goiás Velho, atingidos por devastadora enchente. 
    Pouca coisa também havia sobrado da velha capelinha luizense, mandada erguer pela beata Maria Antonia dos Prazeres no comêço dos anos 1800.
    Ao se priorizar o resgate de seus elementos construtivos e decorativos, ficou evidente que nenhum milagre poderia ter salvo a frágil construção da força das águas. A despeito de sua robustez aparente, as grossas paredes de taipa sustentavam-se sobre o solo nú, afincando-se por apenas 50 cm, sem um traço sequer de alicerce de pedra.
Capela em ruínas
    Com muito esforço, foi salvo um tanto do material de edificação de outrora, como partes da estrutura de ferro, peças de madeiramento e da decoração. Os elementos que não puderam ser recuperados foram refeitos, com base na documentação gráfica e fotográfica existentes.
    Para dar uma idéia aos visitantes sobre o processo original de construção, um trecho da antiga parede de taipa que resistiu ao desabamento, foi preservado em redoma de vidro exibida logo à entrada. À sua volta uma estrutura de concreto armado com 7,2 toneladas de aço e quatro metros de fundações sustentam as novas paredes, erguidas com 100 mil tijolos de barro cozido, do tipo colonial, feitos especialmente para a obra.
    “Optou-se por deixar à mostra o que restou da taipa, para se ter uma idéia de como a capela foi construída. Isso tem apenas uma função ornamental, pois não há peso em cima dela, uma vez que ela nada sustenta”, explicou o engenheiro Mauro Henriques de Arruda, responsável pela obra civil.
    Ao final, após consultar a população, ele providenciou a restituição das veneráveis cores azul e branca da fachada, características da primeira pintura que o templo ganhou ao ser erigido há 197 anos.
    Transcorrido pouco mais de um ano da enchente, em três de janeiro último deu-se início às obras. Os trabalhos contratados pelo Ministério da Cultura consumira R$ 1,16 milhão, provenientes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) das Cidades Históricas.
    Fora o empenho em reerguê-la sem ressalvas, outros fatores concorreram para que o templo ficasse pronto até o Dia de N.Sª das Mercês, dali a nove meses.
Ladeira das Mercês
    O principal deles foi a sorte de ter em mãos a planta original. Em 1959 o arquiteto Armando Rebolo havia feito um minucioso levantamento arquitetônico.
    "Essa listagem de plantas, cortes, estudos e o material recuperado, além de documentação variada, nos permitiram refazer com segurança os detalhes da construção que ruiu ", observou o arquiteto Antônio das Neves Gameiro, do escritório Iphan, de São Paulo, responsável pelo projeto. "Salvamos o que foi possível, menos a pátina do tempo - lamentou."
    O próprio Gameiro havia estado em São Luiz na década de 1970, primeiro como fotógrafo documental, e depois como arquiteto do órgão, realizando um levantamento de aproximadamente 110 imóveis.
      Mas talvez o mais determinante em tudo isso tenha sido a dedicação da brigada especial de operários residentes de São Luiz, que se ofereceu espontaneamente à missão de reerguer patrimônio tão querido a todos.
  Foram Biro-Biro, Tuia, Pokémon, Mindé, Baianinho, entre outros, um pouco mais de 20 conterrâneos ou agregados, que pelo arrebatamento que empenharam à obra, deram um significado maior à ressureição da capela, na maneira que a cidade passou a enxergar o seu futuro.
"As cidades são um sonho coletivo"
Jaime Lerner, arquiteto, ex-prefeito de Curitiba
Postado por: Enéas M.F.