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domingo, 22 de agosto de 2010

O que importa, afinal

Sabe aquela TV de 14 polegadas preto e branco que você guarda zelosamente desde 1987, embora não tenha a menor idéia do que vá fazer com ela ? E os dias de contrariedade que você passou ao descobrir uma horrível mancha de manteiga na página 137 daquele livro sobre pescaria ? O que dizer então da crise de halitose que apareceu, justamente na tarde daquela sexta-feira ?
Se alguma coisa pouco relevante assim faz parte de suas preocupações, não se aflija. No olhar que guardamos para o cotidiano, é comum enxergarmos os objetos como se fossem neutros e de importância quase sempre descartável. A impressão que se tem é que a vida é duradoura e o mundo concreto, efêmero.
Afinal, o que importa ? é uma questão que cabe as respostas mais confortáveis, enquanto a vida estiver flanando risonha e franca. Quando, porém, ela é interrompida pelo o inesperado, como uma enchente avassaladora, subitamente nenhum destes valores mais se sustenta.
O mundo fica maior do que a tragédia tem capacidade de carregar, e as partes juntadas após a desgraça formam um inusitado todo. O tempo não tem só um fim; ganha etapas. Como se vindo de algum lugar insólito da alma,a vida deixa de pedir muito e não mais se deseja com tanta ansiedade. É como se as prioridades mudassem, ou o que é mais confortante, revelam sua verdadeira natureza.
Não acontece propriamente uma perda da inocência, mas o valor de todas as coisas diminui e fica a sensação de algum tempo perdido, de esforços em vão. Desponta uma outra realidade, mais sensata, em que os bens materiais mostram outra dimensão e propósitos. A vida ganha uma importância que vai além dos batimentos cardíacos, por exemplo.
O vendedor de um grande magazine de Taubaté observou que os clientes luizenses atendidos depois da enchente, encaravam as compras com outro critério. Escolhiam os produtos pela sua utilidade, na versão mais funcional e básica, sem muito se importar com as funções acessórias dos aparelhos. Detalhe; os cônjuges concordavam.
Diante do fato consumado, não resta outra alternativa, a não ser um profundo sentimento de desapego pelos bens perdidos. O que pode ser reposto tem pouca emoção, quase nenhum humor e a menor conexão possível com o passado. As paredes nunca estiveram de pé e os muros jamais protegeram o verdadeiro tesouro. A colherinha de tomar sorvete é insubstituível, a meia de frio preferida irrecuperável e o velho caderno de observações, insondável de vez.
Digo do que se foi sem volta, que esgotou-se pela ausência. É o que acontece quando se perde o que poderia ter sido a biografia de uma vida. Ou seja,todas as lembranças fotográficas guardadas, os registros profissionais de uma carreira, os escritos feitos, recebidos e recolhidos, a memória afetiva, a coleção de livros que valiam pelo o que significavam. E de tudo o mais doído, o desaparecimento sumário dos testemunhos de que se amou e foi amado um dia.
Foto: Andrei Baciu (Entrevisto)

Postado por: Enéas M.F.

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