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domingo, 22 de agosto de 2010

Sob o luar, despedaçados


Enchente 1967 - Foto: Arquivo Benito Campos
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No céu, que a poucos interessava em São Luiz do Paraitinga, brilhava uma luminosa lua cheia naquele primeiro anoitecer de janeiro de 2010. Na verdade, era uma rara Blue Moon. As fortes chuvas dos dias anteriores tinham cessado e a preocupação geral era com o comportamento do rio Paraitinga que corta a cidade. No fim da tarde ele já havia saido do leito e alcançava a praça da cidade. Caso ficasse naquela cota, não causaria mais do que o desconforto de uma cheia rotineira de verão, que raramente superou os quatro metros de altura. Mas tudo não passou de uma trégua ilusória, como iriam testemunhar logo depois os poucos moradores que ainda não tinham se recolhido.
Quando a luz elétrica acabou por volta das 22 horas, não restou alternativa à população senão dormir, sem desconfiar do que viria. Lá fora, o luar mais intenso era a única luz a refletir nas águas do rio que começava a vazar pela cidade, impondo uma devastação silenciosa.
São Luiz começava a ser alcançada pelos 300 milímetros das chuvas que tombaram na cabeceira do rio, desde a zona rural de Cunha. Agora o Paraitinga, saído de sua calha, entrava pela primeira vez na história em casas do bairro do Benfica, estendendo-se por até 500 metros do leito vazado. Após ganhar a rua do Carvalho, intrometeu-se inicialmente pelo esgoto nos quintais, para em seguida vencer os muros das casas mais baixas. Saídas as carreiras para a rua, as pessoas, algumas mal vestidas sobre pijamas, procuravam em vão entender o que se passava.
De onde vinha o aguaceiro ? Aonde vai parar ? eram perguntas para quais respostas ninguém tinha. Como do céu não caia mais nenhuma gota, ficava difícil comprender a enchente que subia com voracidade, à média regular de 50 centímetros por hora. Salvar a vida era a única preocupação que restara a todos diante do flagelo incontrolável. Sem os telefones que emudeceram a seguir, a população refugiada no alto do Rosário foi assistindo sua cidade submergir no rio-mar.
A aflição tomou conta da madrugada, forçando a debandada de milhares de suas casas. Alguns sairam com vida graças ao socorro sem hesitação das equipes de rafting locais. Acostumados a prestar socorro nas enchentes costumeiras, os rapazes puseram seus botes na água e a vida em risco, logo na primeira hora da catástrofe. Imersos na escuridão da noite, eram os únicos braços confiáveis com que podiam contar os desalojados, reféns da enchente. Pela mesma razão embarcaram também, mais tarde, os poucos que relutavam em deixar seus cantos. Um ato de coragem pessoal, à moda antiga, porque necessário, de pura solidariedade.
O dia estava para amanhecer quando o nível d'água havia parado em impensáveis 12 metros. Nenhum ruído agradável, seja de gente ou animal, quebrava aquele silêncio de cemitério que abafava os peitos. As pessoas vagavam sem confraternização pelas ruas, falando de perplexidades. O pesadelo, porém, não terminara.
Aos poucos todos aprendiam a identificar o som do horror que vinha do desabar de alguma antiga construção de taipa, mergulhando na água como uma jibóia. Ao ohh coletivo seguia o desmoronamento dos casarões seculares, da velha capela, e por fim, da igreja matriz, que desmilinguiu-se aos talhos, com os sinos tocando. Ao lado dela, a tradicional escola pintada com as cores da bandeira nacional, ruiu no momento seguinte em que um grupo de desalojados, a maioria crianças, eram resgatados. Como por ironia, o turbilhão que se formou com a queda do prédio, carregou o bote em que estavam para uma distância segura. Mais uma vez naquela noite, a providência poupava um acidente fatal.
O sol que ia despontando só fazia aumentar o desalento, ao revelar a formidável dimensão da tragédia. Algo em torno dos 70% da cidade estavam debaixo d'água, incluindo todo o centro histórico, por onde o leito expandido do Paraitinga fluia em densa correnteza.
Sob o signo da tragédia fechava-se mais um ciclo da história centenária da cidade. Em comum a todos, a sensação que muita coisa do passado se perdeu para sempre, e não foram apenas bens materiais.
À retina sobrou a imagem de paisagens nunca vistas, e à alma, o tormento de ruínas jamais esquecidas.

Postado por: Enéas M.F.

Um comentário:

  1. Dá quase pra sentir na pele como essa tragédia. Força, gente.

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