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sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Os traumas de uma tragédia

Qual é a extensão dos ferimentos da alma que uma tragédia como a de janeiro deixou nos luizenses ? Teve quem perdesse muito, como a casa, seu negócio e todos os bens que lá estavam. A maioria, felizmente, foi menos afetada, mas a desvastação da enchente abalou a todos de uma maneira ou de outra. Até mesmo quem teve a sorte de passar ao largo da lama, ficou privado da igreja matriz que frequentou, ou foi batizado ou apenas se casou. Ou então viu sumir a escola onde outrora estudou. Na melhor das hipóteses, ficou privado da imagem do conjunto histórico que povoou a vida e paisagem de gerações. Seja como for, muitos sofrerão do que se chama de "estresse pós-traumático", precisando cuidados psicológicos. É desta forma que analisa a dra. Yaya de Andrade, uma psicóloga paulista que vive e trabalha em Vancouver, Canadá. Especialista na questão, com certificado pela American Academy of Experts in Traumatic Stress, ela tem sido convocada pela Nações Unidas (ONU) e ONG's canadenses, para atuar em paises como Sri Lanka, Cambodja e China, assistindo e coordenando atendimento após desastres como tsunamis, terremotos, entre outros. Nesse trabalho, desenvolveu conhecimento em técnicas terapêuticas, como o ensino e discussão com grupos e líderes de comunidades, sobre o impacto de experiências traumáticas e a importância dos círculos de apoio. Recentemente foi agraciada no Canadá com o prêmio "International Humanitarian Effort Commendation". - São Luiz vai emergir deste episódio como uma cidade melhor - assegura a especialista.

Cuidando de medos e ansiedades

Pergunta - Como é feito o tratamento psicológico aos atingidos por uma tragédia,como foi a nossa enchente ?

Resposta - As experiências traumáticas coletivas, como uma enchente ou um grande incendio, onde perdas materiais são significativas para todos, provocam impactos que variam de pessoa para pessoa. De um modo geral é elaborado um plano de cuidados, a partir da forma como será prestado esse apoio pelos psicólogos. Os participantes - vítimas, familiares, líderes comunitários, profissionais - são todos parceiros ativos e contribuem com uma avaliação das necessidades, dificuldades e recursos. O modelo de cuidado psicossocial (não a cura) visa a comunidade como um todo, que é prestado através de círculos de apoio a indivíduos, famílias e escolas.

P - O que muda na abordagem do tratamento, uma vez que em São Luiz não tivemos casos fatais durante a cheia, já que os moradores em situações de risco foram removidos a tempo ?

R - Ocorrem diversas reações depois do desastre, como medos, ansiedade, desorientação, luto, dissociação, confusão, depressão e dores. O tratamento, ou melhor o apoio, visa a recuperação física-emocional e a aceitação da realidade. Trata-se de apoio psicossocial, informações apropriadas, encontros para discussão de planos, comunicação entre sobreviventes, avaliação de aspectos físicos e emocionais que devem ser tratados, coordenação de serviços a escolas, envolvendo crianças, adolescentes, pais, relatórios sobre o evento, documentação, e encaminhamento para psiquiatria de casos mais graves que envolvam medicação.

P - Se, por um lado, não tivemos vítimas fatais, muitos vieram a morrer posteriormente ou tiveram sequelas graves, ao darem conta dos riscos que passaram ou devido as perdas materiais que sofreram, que foram muito altas. Como tratar esse abalo pós-traumático ?

R -
O estresse pós-traumático é uma consequência de uma experiência que varia segundo seu tipo, natureza e severidade. É importante saber que, entre 20 e 30% de um grupo de afetados por eventos catastróficos, têm dificuldades em lidar com a situação, levando ao estresse pós-traumático.
Veja que ele tambem é influenciado pela repercussão que o evento terá, ou seja pela forma como a mídia irá tratar o ocorrido. Quando existe ameaça à vida, saúde ou integridade física, ele é mais evidente e imediato. Depois do ápice do episódio, temos suas consequências, como a evacuação, relocação de moradias, falta ou racionamento de comida, machucados, perdas materiais, dificuldades de assistência ou de apoio, que também são responsáveis por sequelas importantes. O desastre em si tem uma duração limitada, mas as mudanças que ele provoca são muito mais duradouras e igualmente impactantes como traumas.


P - Como compatibilizar os cuidados aos dois tipos de afetados - os que tiveram perdas materiais e os outros que sofreram apenas os reflexos da enchente ?

R - Perdas materiais são difíceis de serem aceitas, assim como mudanças pessoais. Boa parte das vítimas podem responder ao estresse com o aumento de batimento cardíaco, variação da pressão sanguínea, crises de suor, respiração alterada, perturbação do sono, dores na musculatura, falta de energia, problemas digestivos. Tudo isso é resultado da tensão e estresse gerados pela experiência, ou pela constatação posterior das perdas materiais.
"São Luiz vai emergir deste episódio como uma cidade melhor"

P - Como amenizar a inevitável sensação de desamparo ou impotência gerados pela tragédia, apesar de termos tido socorro e assistência efetiva em todos os níveis ?

R - Todos devemos estar preparados para situações difíceis que a vida nos reserva, mais cedo ou mais tarde. Já os desastres podem ser prevenidos, até certo ponto. Os psicólogos podem ajudar vítimas de desastres esclarecendo os sintomas do estresse e dando todo o tipo de apoio necessário ao restabelecimento do equilíbrio emocional dos afetados. É muito importante escutar as histórias, prestar atenção, ajudar na recuperação da autoestima, com empatia e calma. Deve-se evitar argumentação, prometer o impossível, ser autoritário, dar conselhos inadequados e criticar a falta de ajuda. As crianças merecem uma atenção especial, pois são mais sensíveis a esta mudança abrupta em suas vidas. Como têm grande capacidade de recuperação, é importante que elas voltem a se ocupar com coisas familiares, para ir restaurando a rotina e resgatando o senso de segurança.

P - Depois dessa experiência, os valores pessoais mudaram para quase todos os atingidos. Há alguma chance de sermos, no futuro, as mesmas pessoas de antes ?

R - Um evento ou experiência traumática pode alterar pessoas, mesmo após a fase de reação. Depois de um certo tempo vem a fase de reconstrução, onde as emoções são menos intensas. Nessa hora ressurge o interesse em continuar a vida, encarar os desafios. Posteriormente teremos a fase de reorientação, quando as pessoas aceitam a experiência e descobrem que são fortes e capazes de superar o que aconteceu, lidando com a situação presente e fazendo planos realísticos para o futuro.

P - Do seu ponto, como será a cidade que emergirá desta tragédia ?

R - Cidades evoluem. Como mostra a história, tragédias coletivas podem efetivamente melhorar a qualidade de vida de toda uma comunidade. Minha experiência em lugares como o Sri Lanka, Cambodja e China, mostraram que os sobreviventes costumam fazer planos para se proteger de futuros eventos como o que sofreram. Muitas pessoas descobrem novas potenciaidades e habilidades dentro de si. A ação de grupos de apoio costuma mostrar que o isolamento e opção pela auto-suficiência não é o melhor caminho. Na verdade somos todos dependentes uns dos outros e nessas horas as pessoas são capazes de uma generosidade que até elas mesmos desconhecem. Elas se descobrem mais capazes de tomar decisões,não apenas para si e suas familias, mas também para a comunidade.


P - Quais estímulos devem ser dados à comunidade ?

R - Há uma vontade generalizada de participar de comitês de planejamento, sugerir alternativas e procurar recursos. Por sua vez, as instituições públicas se conscientizam da necessidade de melhor informar a comunidade sobre prevenção de tragédias, oferecem treinos, estabelecendo protocolos e processos para situações de emergências. Em Vancouver, onde moro, vivemos sempre sabendo que terremoto é uma possibilidade, e por isso a comunidade está de prontidão, com equipes de voluntários em permanente exercícios para enfrentar o pior. Tenho certeza que São Luiz do Paraitinga vai emergir como uma comunidade modelo de segurança e planejamento, por ter aprendido com a enchente.


Dra. Yaya de Andrade se prontificou a acolher eventuais pedidos de esclarecimentos, através do email: yayadeandrade@hotmail.com

Postado por: Enéas M.F.

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